Foi ao solicitar as prisões, em janeiro de 2015, que os investigadores tiveram certeza das dificuldades a serem enfrentadas. O juiz Ricardo Augusto Soares Leite, da 10ª Vara Criminal de Brasília, única especializada em lavagem de dinheiro na capital, negou todos os pedidos de prisão contra os integrantes do esquema. Mas ainda em 2014, os investigadores perceberam que algo estranho ocorria.
Após as diligências preliminares confirmarem a denúncia anônima, a PF [1] solicitou a quebra de sigilo fiscal das empresas e pessoas apontadas como integrantes do esquema. Os arquivos com as informações bancárias revelaram aproximadamente 163 mil transações financeiras entre as empresas e pessoas investigadas. A soma alcançou a cifra de 1,3 bilhão de reais. Com esses números, ficou evidente para os delegados a necessidade de interceptações telefônicas a fim de descobrir qual era o modus operandi do grupo e quem eram seus clientes finais.
Nesse primeiro momento, estavam na mira dos federais dois núcleos de empresas de fachada intermediadoras do pagamento de propina.
O primeiro deles era comandado pelo ex-conselheiro José Ricardo da Silva. Filho do também ex-conselheiro Eivany Antonio da Silva, investigado no passado em esquemas de fraudes tributárias parecidas com os que são alvos da Zelotes. Silva, diz a PF, “esteve envolvido em associação criminosa com João Batista Grucinki, o ex-conselheiro Edison Pereira Rodrigues, Adriana Oliveira e o conselheiro Paulo Roberto Cortez”. Para os investigadores, as interceptações telefônicas e telemáticas comprovaram que José Ricardo da Silva, quando conselheiro, foi corrompido para atuar em processos da Gerdau que somavam 1,2 bilhão de reais. Embora tenha atuado diretamente em votações, a PF descobriu que Silva, após deixar o Carf [2], passou a utilizar ao menos oito empresas de fachada para receber vultosas quantias de partes integrantes de processos na Receita Federal.
Por conta da extensa quantidade de informações colhidas com a quebra do sigilo das empresas de Silva, a PF conseguiu apenas mapear e analisar as transações da SGR Consultoria Empresarial. Entre 2005 e 2013, a empresa movimentou cerca de 115 milhões de reais. Ao mapear as 909 transações financeiras, a PF descobriu que a origem dos valores eram de empresas com processos pendentes no Carf. Com 11,9 milhões em depósitos, a RBS lidera o ranking de empresas que mais depositaram nas contas da SGR.
Diz a PF sobre a relação das duas empresas:
A empresa RBS foi citada como tendo sido beneficiada com a venda de decisão favorável pelo esquema do Carf. O fato de José Ricardo se declarar impedido no julgamento somado com as transferências de dinheiro para as contas da SGR acaba dando provas de que defendia o interesse privado da RBS.
A empresa discutia uma dívida de 672 milhões de reais no órgão.
Três bancos também foram responsáveis por depósitos nas contas da SGR. O Brascan depositou 2,7 milhões de reais em 2011. Num dos três processos que o banco possui no Carf, Silva participou em um dos julgamentos mesmo com sua empresa mantendo vínculo com o Brascan. Envolvido em um escândalo mundial de lavagem de dinheiro, o HSBC figura na lista como depositário de 1,5 milhão de reais efetuado em 2005. Dois processos em desfavor do banco foram encontrados no Carf. O julgamento dos recursos, segundo a PF, coincide com os depósitos.
O terceiro banco que manteve relações com a SGR foi o Opportunity. Por meio de sua gestora de recursos, segundo a PF, o banco de Daniel Dantas depositou, em 2009, 177 mil reais nas contas da empresa. Foram encontrados 18 processos no Carf relacionados ao grupo alvo da Operação Satiagraha.
Outras empresas que depositaram nas contas da SGR são: Marcondes e Mautoni Emprrendimentos, com 4,7 milhões, Via Engenharia (1,8 milhão), GRV Solutions (1,1 milhão), Tov Corretora (566 mil), Suzano Celulose (469 mil), Votorantim (469 mil), Werebe Associados (422 mil), Incobrasa (405 mil), Electrolux (387 mil), Qualy Marcas (305 mil), Caenge SA (300 mil), Avipal (292 mil), Merck SA (257 mil), Hotéis Royal Palm (217 mil), Gestão Planejamento (128 mil), Vinicio Kalid Advocacia (222 mil) e Lemos Associados (117 mil).
Por sua vez, a PF registrou um depósito de 12 mil reais da empresa de Silva para Silas Rondeau. Ex-ministro das Minas e Energia, entre 2005 e 2007, Rondeau ocupou cadeiras nos conselhos da Eletrobrás, Petrobras e Eletronorte.
Com o andamento da investigação um segundo grupo foi descoberto.
O núcleo era formado por Jorge Victor Rodrigues, tendo como parceiros o assessor de Otacilio Cartaxo, atual presidente do Carf, Lutero Nascimento, o genro de Cartaxo, Leonardo Manzan, o chefe da delegacia da Receita em São Paulo, Eduardo Cerqueira Leite, e o ex-auditor do Tesouro Jeferson Salazar. Sócio da SBS Consultoria Empresarial, o conselheiro Jorge Victor foi flagrado nos grampos telefônicos ao negociar o pagamento de propina em vários casos envolvendo recursos bilionários no Carf. Em um deles, uma dívida 3,3 bilhões de reais do Banco Santander, o conselheiro aparece em conversas com Lutero Nascimento, assessor de Cartaxo, nas quais eles tratam os detalhes do plano para cooptar o conselheiro Jorge Celso Freire da Silva.
Em 2014, as conversas entre os dois, segundo a PF, demonstram que o plano teve êxito e contou com a participação de Manzan, genro de Cartaxo. O processo em questão era relativo à compra do Banespa pelo banco espanhol e a comissão para o grupo conseguir barrar a cobrança ficaria entre 1% e 1,5% do valor da dívida abatida. Diz o relatório da investigação sobre o caso Santander:
Enquanto acompanhavam o desenrolar das negociações envolvendo o Santander, os agentes federais perceberam que Jorge Victor também atuava em outros casos milionários.Entendemos restar demonstrado que o grupo corrompeu o Presidente da Turma Jorge Celso Freire da Silva para fazer o exame de admissibilidade e colocar em pauta, tendo este cobrado 500 mil reais.
Em um deles, sobre um processo do Banco Safra de 767 milhões de reais, foi possível detalhar a ação do grupo e a participação de João Inácio Puga, integrante do Conselho de Administração do banco. Para este caso, diz a PF, foi acordado um pagamento de 28 milhões de reais para o grupo de Jorge Victor “a fim de que fossem distribuídos entre o pessoal de São Paulo, Jorge Victor e conselheiros para agilizar os processos dentro do Carf”. Outros 2,5 milhões de reais foram solicitados em forma de adiantamento a “pretexto de localizar e cooptar a pessoa certa para a manipulação”.
Com o objetivo de comprovar as negociações, a PF acompanhou o encontro agendado por telefone entre Puga e os integrantes do esquema. Em 25 de Agosto de 2014, os agentes fotografaram desde o encontro dos envolvidos no aeroporto, a reunião em um restaurante na capital paulista e o retorno de Puga para a sede do Safra na Avenida Paulista.
Foi a ação do grupo de Jorge Victor em um processo do Banco Bradesco o responsável por acender o alerta vermelho, em 2014, dentro da PF. Após as diligências preliminares e quebras de sigilo, o juiz Ricardo Leite autorizou que as interceptações telefônicas começassem em 28 de Julho de 2014. A partir desse momento, as suspeitas, uma a uma, foram confirmadas pelas conversas entre membros do grupo criminoso, conselheiros e representantes das empresas beneficiadas. Tudo ia bem, até que no início de setembro os grampos mostraram os preparativos para uma reunião entre integrantes do grupo criminoso e a cúpula do Bradesco.
Em conversas realizadas entre setembro e outubro, o conselheiro Jorge Victor fala ao ex-auditor do Tesouro Jeferson Salazar e ao chefe da Delegacia Especial da Receita em São Paulo, Eduardo Cerqueira Leite, dos detalhes do encontro.
Diz o relatório da PF:
As ligações corroboram não só o encontro, mas também as tratativas para o julgamento. Salazar chega a dizer que Eduardo foi bem em suas colocações na reunião com o BRA(Bradesco). Estavam todos, os vices e o presidente. O Trabu (Trabuco) esteve presente, cumprimentou a todos e saiu.
A PF chegou a mobilizar uma equipe para acompanhar o encontro, mas não teve êxito em registrar com fotos, porque os policiais foram convidados a se retirar do prédio da presidência do banco, em Osasco.
A partir desse primeiro encontro, em outubro, os investigadores acompanharam várias conversas entre os integrantes do núcleo de Jorge Victor sobre as negociações com o Bradesco. As expectativas do grupo melhoraram em 12 de Novembro, quando o Carf negou por unanimidade um recurso do banco. Com a negativa, os integrantes do grupo debateram nas conversas interceptadas ser momento de tentar fechar um contrato para intermediar, como aponta a PF, “a reversão do resultado do processo na Câmara Superior”. Seria prometido achar “o paradigma para o recurso especial e alguém para apreciar e aceitar” a argumentação.
Um dia após a votação, em 13/11, a negociação com a cúpula do Bradesco fica explícita em um grampo. Em conversa com Eduardo Leite, o empresário Mário Pagnozzi, apontado pela PF como responsável por captar clientes para o esquema, comenta que o próprio Luiz Carlos Trabuco, presidente do Bradesco, conversou com ele e afirmou:
Mário, fico feliz de você estar aqui, ajudando o banco.Com essas informações, os investigadores se animaram e aguardavam o desenrolar das negociações para provar a corrupção envolvendo o Bradesco e o grupo.
Entretanto, sete dias após a conversa interceptada citar a fala de Trabuco a Pagnozzi, em 20 de Novembro, o juiz Ricardo Augusto Soares Leite mandou cessar as interceptações telefônicas e impediu a PF de confirmar se o banco aceitara a proposta. A decisão irritou os investigadores e confirmou as desconfianças sobre a dificuldade em investigar os desmandos dentro do Carf. Nos bastidores, os agentes federais fazem questão de lembrar que o ministro da Fazenda Joaquim Levy, ex-funcionário do banco, logo que assumiu nomeou como vice-presidente do Carf a advogada do Bradesco Maria Teresa Martinez Lopes.
Enquanto os documentos amealhados nas buscas e as transações financeiras das outras empresas ligadas aos integrantes do esquema são analisados, nos bastidores da Zelotes o clima é de apreensão. Com o retrospecto negativo na relação com o juiz Ricardo Leite, os investigadores duvidam que novas diligências e quebras de sigilo sejam autorizadas.
Sem jamais ter recebido destaque midiático, o assunto foi sumindo da mídia. Também ao contrário do que ocorreu com a Lava Jato, o Ministério Público Federal pediu a prisão preventiva de 26 investigados, mas todos os pedidos foram negados pelo Poder Judiciário. Daí a ideia de pedir ao Conselho Nacional de Justiça para acompanhar o caso.
Curiosamente, a Zelotes não é noticia, e a chamada grande mídia não demonstra nenhum interesse em ter acesso ao processo, em cobrar providências. Como explicar à sociedade brasileira que um esquema que causou um prejuízo aos cofres públicos de R$ 19 bilhões não seja de interesse público? Entre os crimes investigados, está advocacia administrativa, tráfico de influência, corrupção, associação criminosa e lavagem de dinheiro.
Um levantamento feito pelo senador Otto Alencar (PSD-BA) constatou que mais de 120 mil processos tramitam no CARF, contestando a cobrança de R$ 565 bilhões em impostos e multas:
Se o Governo fizer um Refis [3], dispensar multas e juros e der um desconto de 30% sobre o valor devido, ainda receberia o suficiente para evitar o ajuste fiscal proposto.A tabela mostra a distribuição dos processos conforme o valor dos impostos devidos:
Nota-se que o menor grupo composto por 780 processos, corresponde ao maior valor em impostos e multas que a União teria que receber de grandes empresas, somando mais de 357 bilhões. Neste grupo estão os grandes clientes, que pagam propinas aos conselheiros para ter os valores anulados ou reduzidos.
"Este conselho foi criado para poupar os grandes conglomerados de pagar impostos", diz Otto Alencar, membro da CPI do CARF, que será instalada pelo Senado. O recurso em tramitação até o anúncio da Zelotes, contestando o maior volume de impostos, é do Banco Santander, que queria se livrar de uma dívida de 3,3 bilhões. A Ford tem um recurso da ordem de 1,7 bilhão.