Até poucas semanas atrás o mundo era um lugar bem inquieto: havia uma guerra civil na Síria, um Egipto em crise profunda, uma Líbia onde as pessoas continuam a morrer, uma intervenção "humanitária" no Mali, uma Tunísia que eliminava a oposição.
Enfim: havia uma Democracia que avançava alegremente.
De repente tudo isso mudou: entre um Carnaval sul-americano, uma vaga de frio e um idoso que pede a reforma antecipada, o mundo tornou-se um lugar melhor.
Explodiu a paz? Talvez não, talvez os problemas permaneçam.
Simplesmente: há assuntos mais "importantes".
Do Mali
Na França, o presidente socialista Hollande e o Ministro dos Negócios Estrangeiros Fabius justificam a intervenção no Mali como "luta contra o terrorismo que interessa não apenas a França mas a Europa toda". A Europa toda? Pois, isso mesmo.
Bernard-Henry Lévy, o filósofo-empreendedor orgulhosamente hebraico, amigo pessoal de Sarkozy, afirma que a intervenção francesa contra as tropas islâmicas "confirma o plano dos deveres de protecção já estabelecidos pela intervenção na Líbia". O que significa: uma vez estabelece um precedente, duas vezes torna-se lei. E uma vez estabelecida a lei, tudo é justificado.
Única voz contrária no País do champanhe é aquela do ex Ministro dos Negócios Estrangeiros Dominique de Villepin, segundo o qual no Mali há "uma missão com objectivos pouco claros".
Permito-me discordar: os objectivos parecem bem claros.
E a propósito de terrorismo: o que a França faz, com o apoio de Estados Unidos, Inglaterra e o culpado silêncio de todos os outros Países (sem excepções) é extremamente grave, mesmo considerando a ameaça "terrorista".
Os caças Mirage de Paris partem de milhares de quilómetros para largar a carga mortífera sobre os cidadãos do Mali: de facto, intervêm pesadamente numa guerra civil interna que vê o povo Tuareg e outras facções (integralistas e não) contra o governo da capital.
Consequências? Como já afirmado por parte de alguns guerrilheiros locais: "Vocês atacaram a nossa gente, sem razão, no nosso território; portanto agora temos o direito de vos atacar no vosso território, seja na França, na Europa, em qualquer lugar".
É este um discurso linear, lógico, tragicamente correcto.
No Afeganistão, no Iraque, na Somália, na Líbia, podem aplicar o mesmo raciocínio.
Depois na tranquila Europa, numa discoteca da Ásia ou nos armados Estados Unidos algo rebenta e começa a caça ao culpado, as acusações, a análise religioso-sociológica, os sermões pró-liberdade&democracia. E ninguém pergunta: "Mas porque raio fomos pôr o nariz e as bombas em casa dos outros?".
Quem é afinal que fomenta o terrorismo?
Da Argélia
O caso da Argélia. Lembram-se da crise dos refém, no final do mês passado, em Amenash? A intervenção das Forças Especiais, os mortos? Um passo atrás, cerca de 20 anos.
Em 1991, as primeiras eleições "livres" da Argélia, depois de trinta anos duma sangrenta ditadura militar, foram ganhas pelo FIS (Frente Islâmica de Salvação), com 78,5% dos votos. Em seguida, os generais locais, com o apoio de todo o Ocidente, político e intelectual, cancelaram as eleições argumentando que o FIS tinha estabelecido uma ditadura. Na verdade, a Frente Islâmica de Salvação, apesar do nome, não era particularmente fanática, incluindo a maioria dos grupos religiosos mais moderados.
Seja como for, em nome duma ditadura meramente hipotética era reafirmada a ditadura anterior.
Todos os principais líderes do FIS foram colocados na prisão. Uma péssima pedagogia "democrática", que ensinava que as eleições, peça fundamental de qualquer democracia, são boas se nós (o Ocidente) ganharmos, caso contrário não são válidas.
O que acontece num País, qualquer País, onde quase 80% da população vê roubado o seu voto? Uma guerra civil. E assim foi. Os grupos mais decididos e radicais do FIS formaram o GIA (Grupo Islâmico Armado) e começou uma guerrilha que durou muitos anos. Com um total de 200.000 mortes, na maior parte civis.
Samraoui Mohamed, um ex-número dois dos militares, num livro de 2003 ("Crónicas de um ano de sangue") contou quantos massacres de civis, inclusive a destruição de inteiras aldeias, atribuídos ao GIA tinha sido na verdade o trabalho das unidades das Forças Especiais da Argélia, disfarçados de extremistas islâmicos, para direccionar o ódio das pessoas contra os guerrilheiros e justificar aos olhos do Ocidente mais de 15.000
desaparacidos e as horríveis torturas praticadas nas prisões da Argélia.
Também contou como o chefe dele, Smaïn Lamari, repetia:
Estou pronto para eliminar três milhões de argelinos para manter a lei e a ordem.
A lei e a orem dele, claro.
Os guerrilheiros perderam muito da sua força, mas grupos de resistência permaneceram. E ainda actuam. Um excelente "caldo" para a criação dos jiaidisti mais radicais, aqueles da guerra total, os verdadeiros "terroristas". Que reuniram-se em massa na Argélia.
Não é por acaso que o líder do ataque em Amenash, Mokhtar Belmokhtar, pediu em troca da libertação dos reféns dois terroristas de nacionalidades diferentes, presos nos Estados Unidos: o xeque egípcio Omar Abdel Rahman e o cientista paquistanês Aafia Siddiqui. A guerra entre o Islão e o Ocidente agora é global e os Países "democráticos" nada fazem para alcançar uma solução um pouco menos sangrenta.
No
commando que invadiu a central de Amenas havia pessoas da Argélia, do Iêmen, do Egipto, da Síria, da Tunísia, da Mauritânia, da Líbia, até três ocidentais: um francês, um inglês e um canadiano.
Do Egipto
E nos Países onde oficialmente não há guerra, onde chegou a lufada de "ar fresco" chamad
a Primavera Árabe?
O Egipto, por exemplo: o governo da Irmandade Muçulmana está a precipitar o País no caos económico. E Libra Egípcia continua a perder valor face ao Dólar e isso tem profundas implicações, dado que a população importa bens para a agricultura na moeda de Washington. As tentativas do banco central para manter estável a moeda local fracassam.
O resultado é que no País é quase impossível encontrar Dólares, os bancos recusam o câmbio e os únicos Dólares são aqueles do Banco Central, que todavia perdeu algo como 23 biliões desde a época de Mubarak (36 biliões de Dólares guardados na altura, 13.6 biliões agora).
Solução? Simples: uma "ajuda" do simpático Fundo Monetário Internacional (FMI). Ficam mais claras agora as razões da Primavera? Obviamente o FMI pede garantias, em primeiro lugar um aumento das taxas e dos impostos.
Mais: a Irmandade Muçulmana descobriu o
dumping (prática que consiste na venda de bens com preços extremamente baixos, até inferiores aos custos de produção: e onde será que descobriram isso?), pelo que ao abrir uma empresa no Egipto o governo devolve 10% do investimento inicial.
Por exemplo, imaginemos uma empresa estrangeira que investe 10 milhões de Euros: 1 milhão será gentilmente devolvido, o que irá reflectir-se no preço final do produto vendido.
E como se isso não fosse suficiente: por cada factura que comprove a exportação, o governo do Cairo ajuda com outro 10%.
Pergunta: e onde encontram este dinheiro todo dado que estão quase falidos? Será o caso de espreitar nas contas dos vários FMI ou Banco Mundial? E os governos dos outros Países, nada a dizer?
Da ignorância
Isaac Newton afirmava:
Actioni contrariam semper et aequalem esse reactionem: sine corporum duorum actiones in se mutuo semper esse aequales et in partes contrarias dirigi.
"A toda acção há sempre uma reacção oposta e de igual intensidade: ou as acções mútuas de dois corpos um sobre o outro são sempre iguais e dirigidas em sentidos opostos".
Acção-reacção. Newton tinha percebido isso em 1687. Nós continuamos como se as nossas reacções fossem as únicas que pudessem fugir a esta regra.
Mas afinal: tudo isso interessa? Provavelmente não.
Primeiras páginas:
O Globo: Bento XVI faz primeiro pronunciamento após anúncio da renúncia
Estadão: Beija-Flor e Vila Isabel são favoritas; apuração no Rio começa às 16h
Diário de Notícias: Multa por não pedir fatura só no ato da venda
Expresso: Dois deputados franco-portugueses contestaram casamento gay
Corriere della Sera: Sanremo, 14 milhões de telespectadores
Ipse dixit.
Fontes: Massimo Fini, Rischio Calcolato
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