Escravos voluntários?
Conspiração

Escravos voluntários?


Um artigo muito interessante de Etienne De La Boétie, publicado no seu blog Contre le Nouvel Ordre Mondial ("Contra a Nova Ordem Mundial") e do título de "Discurso sobre a escravidão voluntária".

Não é a primeira vez que o blog trata dele: já apareceu um artigo, pouco depois da sua morte (Etienne morreu jovem, aos 33 anos, e em circunstancias nunca esclarecidas), mas aqui o escrito é mais extenso porque acho merecer e porque constitui o ponto de partida para algumas reflexões.

O artigo de Etienne (ET para os amigos) é bastante comprido, mas vou tentar sintetiza-lo. Em particular, falta a última parte, dedicada às tipologias de tiranos. Se os Leitores assim desejarem, irá ser traduzida.

Por enquanto, aconselho ter um pouco de paciência e lê-lo, pois é um post bastante profundo.
Por enquanto eu só queria ser capaz de entender porque tantos homens, tantas cidades, tantas nações por vezes suportam um tirano que não tem nenhuma força, excepto aquela que lhe for concedida, que não tem o poder para prejudicar a não ser aquele que for tolerado e que não poderia fazer mal a ninguém a não ser que seja escolhido ouvi-lo em vez de contradizê-lo.

É um facto muito surpreendente e ainda comum, tanto que é o caso de lamentar-se mais de que maravilhar-se, ver milhões e milhões de homens escravizados, tão miseráveis, colocar a cabeça sob um jugo vergonhoso não por coerção duma força maior mas porque parecem ser fascinados, quase enfeitiçados, por apenas um nome na frente do qual não deveriam temer a força, pois é apenas uma pessoa só, nem apreciar as suas qualidades, porque ele se comporta de forma totalmente desumana e selvagem. [...]

É estranho que dois, três ou quatro se deixem esmagar por um só, mas é possível; é possível dar-lhes a desculpa de lhes ter faltado o ânimo. Mas quando vemos cem ou mil submissos a um só, não podemos dizer que não querem ou que não se atrevem a desafiá-lo. Como não é covardia, poderá ser falta de vontade? Quando vemos não cem, não mil homens, mas cem países, mil cidades e um milhão de homens submeterem-se a um só, todos eles servos e escravos, mesmo os mais favorecidos, que nome é que isto merece? Covardia?

Agora, todos os vícios têm naturalmente um limite além do qual não podem passar. Dois podem ter medo de um, ou até mesmo dez; mas se mil homens, se um milhão deles, se mil cidades não se defendem de um só, não pode ser por covardia. A covardia não vai tão longe, da mesma forma que a coragem também tem os seus limites: um só não escala uma fortaleza, não defronta um exército, não conquista um reino. Que vício monstruoso então é este que nem sequer merece o nome de covardia? [...]

Agora, o mais espantoso é saber que nem sequer é preciso combater esse tirano, não é preciso defendermos-nos dele. Ele será destruído no dia em que o país se recuse servi-lo. Não é necessário tirar-lhe nada, basta que ninguém lhe dê coisa alguma. Não é preciso que o país faça coisa alguma em favor de si próprio, basta que não faça nada contra si próprio.
São os povos que se deixam oprimir, que tudo fazem para serem esmagados, pois isso deixaria de acontecer no dia em que deixassem de servir. É o povo que se escraviza, que se decapita, que, podendo escolher entre ser livre e ser escravo, decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura com todos os meios. Se fosse difícil recuperar a liberdade perdida, eu nem insistiria mais; pode existir algo que o homem deva desejar com mais vontade do que o retorno à sua condição natural, deixar, digamos, a condição de escravidão e voltar a ser homem?

Mas que mais é preciso para possuir a liberdade do que simplesmente desejá-la? Se basta um acto de vontade, se basta desejá-la, que nação há que possa considerar isso tão difícil? Como pode alguém, por falta de vontade, perder um bem que deveria ser resgatado a preço de sangue? Um bem que, uma vez perdido, torna a vida duma pessoas honradas aborrecida e a morte um bom remédio?

Como uma pequena faisca acende o fogo, que cresce cada vez mais e, quanto mais lenha encontrar, tanto mais aumenta e se consome sozinho; e como, sem despejar água, deixando apenas de lhe fornecer lenha, perde a forma e deixa de ser fogo. Assim são os tiranos: quanto mais eles roubam, saqueiam, exigem, quanto mais arruínam e destroem, quanto mais se lhe oferecermos serviços mais eles se fortalecem até aniquilarem e destruírem tudo. Se nada lhes for concedido, se não se lhes obedecer, eles, sem ser precisa luta, acabarão por ficar nus, pobres e sem nada; da mesma forma que a raiz, sem humidade e alimento, se torna um ramo seco e morto.

Os homens corajosos audazes, para obter o que desejam, não receiam nenhum perigo, não recusam passar por problemas e privações. Os covardes e os preguiçosos não sabem suportar os males e nem recuperar o bem. Deixam de desejá-lo e a força para alcança-lo lhes é retirada pela covardia: mas é natural que neles fique o desejo de o alcançarem. Esse desejo, essa vontade, são comuns aos homens sábios e aos ignorantes, aos corajosos e aos covardes; todos eles, ao atingirem o desejado, ficam felizes e contentes.
Numa só coisa, estranhamente, a natureza recusa dar aos homens um desejo forte. Trata-se da liberdade, um bem tão grande e tão precioso que, uma vez perdida, é seguida por todos os males e até os próprios bens que lhe sobrevivem perdem todo o gosto e o sabor, corrompidos pela escravidão. A liberdade é a única coisa que os homens não desejam; e isso por nenhuma outra razão senão o facto que é suficiente desejá-la para obtê-la; é como se recusassem conquistá-la por ela ser tão simples de obter. Gente miserável, povos insensatos, nações agarradas ao mal e cegas perante o bem.
Deixam que a maior e melhor parte das vossas riquezas seja roubada, que os vossos campos sejam devastados, que as vossas casa sejam assaltadas e despojadas até das antigas mobílias herdadas dos vossos pais! Vocês vivem numa condição na qual nada têm de vosso. Mas parece que até recebem um favor quando apenas a metade dos vossos haveres, das vossas famílias e das vossas vidas forem deixados.

E todos esses estragos, essas desgraças, provêm afinal não de muitos inimigos, mas de um só inimigo, daquele cuja grandeza lhe é dada unicamente por vocês, por amor de quem marcham corajosamente para a guerra, para cuja grandeza não recusam entregar à morte as vossas próprias pessoas. Este indivíduo que tanto vos humilha tem só dois olhos e duas mãos, tem um só corpo e nada possui que o mais ínfimo entre os ínfimos habitantes das vossas cidades não possua também; uma só coisa ele tem mais do que vocês e é o poder de destruir, o poder que vocês lhe concedem.

Vocês semeiam os os campos para que ele pouco depois possa destrui-los. Recheiam as vossas casas para ele poder saqueá-las, criam as vossas filhas para satisfazer a sua luxúria, criam os filhos para que ele, quando lhe apetecer, venha a recrutá-los para a guerra e possa conduzi-los ao matadouro, transformados em escravos dos seus desejos e executores das suas vinganças. Vocês matam-se a trabalhar para que ele possa regalar-se prazeres; ficam mais frágeis enquanto ele fica mais forte, para mais facilmente poder controlar-vos. E de todas estas brutalidades, que nem as bestas poderiam aprender e mesmo assim não as suportariam, de todas poderiam vos libertar ao tentar, não digo rebelar-se, mas apenas querer fazê-lo.

Tomem a decisão de não servir e sejam livres. Não peço que empurrem ou derrubem o tirano, mas somente que não o apoiem: como uma colosso a qual seja retirada a base, cairá por terra e se quebrará.

Antes demais, eu creio firmemente que se nós vivêssemos de acordo com a natureza e com os seus ensinamentos, seríamos naturalmente obedientes ao país, submissos à razão e escravos de ninguém.
Todos os homens, por si próprios, sem outro conselho que não seja aquele da natureza, são obedientes ao pai e à mãe; quanto à razão, muito discutem dela os académicos e todas as escolas filosóficas, para entender se ela nasce ou não connosco. Acho não estar enganado em crer que há na nossa alma uma semente natural de razão, a qual, se bem cultivada, floresce; se, pelo contrário, é atacada pelos vícios, morre de asfixia e aborta.
Uma coisa é claríssima na natureza, tão clara que a ninguém é permitido ser cego a tal respeito, e é o facto da natureza, ministra de Deus e governante dos homens, ter nós feito todos iguais, com igual forma, aparentemente num mesmo molde, de forma a que todos nós podemos reconhecer os outros como companheiros ou até mesmo irmãos.

Talvez nem valha a pena discutir se a liberdade for natural ou não, pois está provado que é impossível manter alguém na escravidão sem provocar-lhe uma ofensa, e nenhuma coisa é mais contrária à natureza que tudo faz de forma razoável. Não há dúvidas, portanto, de que a liberdade é natural e que, pela mesma ordem de ideias, todos nós nascemos não só senhores da nossa liberdade mas também com as condições para a defender.
Só quem for surdo não ouve o que dizem os animais: viva a liberdade! Muitos deles morrem quando apanhados. Como o peixe que, fora da água, perde a vida, também outros animais recusam viver sem a liberdade que lhes é natural.
Estes são apenas alguns excertos do texto completo: após a morte de Etienne, e o seu blog foi fechado. Mesmo assim, alguns dos seus Leitores tinham exportado vários textos em formato Pdf, pelo que algo pode ainda ser encontrado na internet.

Acho ser um bom texto, que põe a nossa sociedade perante as suas responsabilidades, que depois são as nossas responsabilidades. É tão difícil livrar-se da escravidão? Ou será que a escravidão representa o álibi perfeito? O nosso álibi.

É uma pergunta que tem de ser feita, porque a liberdade, como explica (e bem) Etinenne, é algo que nasce connosco, algo natural que nos acompanha desde o nosso aparecimento. Se recusarmos seguir o seu chamariz, é porque algo mais atrativo existe. Atrativo mas não natural.

Podemos procurar e utilizar mil e uma razões para explicar esta nossa atitude, das mais óbvias até as mais exóticas. Illuminati, media, Reptilianos, bancos, sionistas e muito mais ainda. E é bem provável que algumas delas estejam verdadeiras, pelo menos em parte. Mas não haverá algo mais? Algo que fica no nosso interior? Não? E por qual razão "não"? Qual prova temos para suportar este "não"?

Qual prova temos para apoiar a ideia de que a nossa condição de escravidão seja apenas uma consequência e não uma nossa livre escolha?

Um assunto já tratado? Sim, sem dúvida. Mil e mil vezes.
Mas ainda à espera duma resposta.


Ipse dixit.

Fonte: Discours de la servitude volontaire (ficheiro Pdf, francês)



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