A táctica já é velha mas continua a funcionar: pega-se num País entretido com a vidinha dele, provoca-se uma insurreição armada, a seguir são enviadas tropas para "ajudar". Como dito: funciona.
Desta vez é o turno do Mali, que nos últimos dias ganhou os títulos da imprensa internacional. Mas porque aquele País?
Calma, antes de mais vamos ver quem é, onde fica, como está e o que quer este Mali.
O Mali, a desgraça
O Mali é um País particularmente desgraçado: a zona norte é um deserto (o Sahara), o centro é árido, o sul é uma savana. Os poucos campos são periodicamente varridos por vagas de calor procedentes do deserto que provocam ulterior seca.
Não admira, portanto, que apesar de ter uma extensão 12 vezes aquela portuguesa, os habitantes sejam apenas 14 milhões.
O trato mais característico do Pais é a extrema pobreza, juntamente com a elevada mortalidade infantil (122%), a baixa esperança de vida (48 anos), o difundido analfabetismo (81%), as epidemias (cólera e parasitas em primeiro lugar).
Na desgraça, o Mali é também particularmente azarado, pois apesar de possuir um território que em nada favorece a subsistência humana, dispõe de assinaláveis riquezas no subsolo, um bem que o País não consegue desfrutar por falta de infraestruturas, investimentos e tecnologia. Falamos aqui de ouro, prata, diamantes, fosfatos, urânio, bauxita.
Este é um aspecto que não podemos esquecer se a intenção for entender o que se passa nestes dias.
Uma situação complicada
Descrever a actual situação é complicado.
Antiga colónia francesa, o Mali conseguiu a independência em 1960 mas poucos depois caiu numa ditadura mono-partidária marxista da qual conseguiu sair apenas em 1968. Após uma nova ditadura, desta vez liderada pelo militar Moussa Traoré, em 1992 o Mali conheceu as primeiras eleições livres, cujo vencedor foi o arqueólogo Alpha Oumar Konare, primeiro presidente democraticamente eleito.
A obra de Konare, que conseguiu "abrir" ao País ao resto do mundo, foi continuada após este ter atingido o limite constitucional de dois mandatos por Amadou Toumani Touré em 2002 e reeleito em 2007.
E aqui começam os problemas.
O Mali é um conjunto de várias etnias: Bambara, Bozo, Dogon, Malinke, Sarakollé, Songhai e Tuareg. Os relacionamentos destes últimos com as restantes nunca foi bom, mas ao longo dos anos foi mantida uma situação de relativa "calma": isso apesar da corrupção que sempre desfavoreceram o "povo do deserto em favor dos habitantes da capital (em Bamako moram mais de 90% da inteira população do País).
Em 2011, o grupo "Tuareg para a Libertação do Azawad" une as próprias forças com as outras componentes independentista da região (Movimento Nacional Azawad e Movimento Popular para a Libertação do Azawad) para formar o
Mouvement National pour la Libération de l'Azawad (MNLA) e apresenta ao governo central um pedido para que seja reconhecida a independência do norte do País (o Azawad). É o início do conflito que o exercito governamental não consegue ganhar apesar das ajudas estrangeiras (Estados Unidos em primeiro lugar).
Em 6 de Abril de 2012 os Tuareg assumem o controle da cidade de Gao e declaram a desejada independência do Estado de Azawad (دولة أزواد المستقلة em árabe). Mas desde cedo surgem graves problemas internos.
Aparece Al Qaeda sob forma do movimento
Al Qaida in the Islamic Maghreb. Mas é importante realçar como Tuareg e alqaedistas não sejam compatíveis: mesmo sendo ambos grupos islâmicos, as diferenças são profundas e não sanáveis. Não é um acaso se os três comandantes do movimentos são na realidade militares da Argélia (Abu Zaid, Mokhtar Belmokhtar e Yahya Abu al Hamman).
Esta incompatibilidade é demonstrada pelos recentes acontecimentos: em Timbuctu são profanados os lugares de culto sufi (os Tuareg são Sufi) e o MLNA é derrotado em Ansogo, não longe da capital do recém nascido estado.
Perguntas: mas donde chegou Al Qaeda? Como entrou no Mali? Onde encontrou as armas? Como foi possível atravessar Países sem que ninguém desse conta de nada (falamos aqui de vários milhares de combatentes com relativas armas)? Como foi possível que os jihadistas conseguissem derrotar os Tuareg, os mesmos que não foram derrotados pelo exército do Mali, treinado e armado pelos Países ocidentais (EUA, como afirmado, mas também França)?
Por enquanto não há respostas. Ou se calhar há: é suficiente saber quem realmente for Al Qaeda.
Entretanto o País já precipitou no caos.
No dia 21 de Março de 2012 os militares ocuparam o palácio presidencial em Bamako e a estação da televisão estatal. O presidente Touré não foi capturado, mas no dia seguinte Amadou Konare apareceu na televisão como porta-voz do Comité Nacional para a Restauração da Democracia e do Estado (CNRDR). A Constituição ficou suspensa e as fronteiras foram fechadas.
E, claro está, eis a ajuda ocidental, onde "ajuda" significa "bombas".
Objectivo é, segundo as intenções oficiais, impedir que os rebeldes islâmicos invadam a parte meridional do País, algo que nunca esteve nos planos dos Tuareg mas que Al Qaeda fez questão de começar. Obviamente, para impedir uma avançada no sul, é bombardeado o norte, aquele Azawad que há poucos meses conquistou a independência. Gao, Konna, Douentza e Lere os alvos.
A ONU? Não poderia faltar: em Dezembro do ano passado, o Conselho de Segurança deliberou a instituição de uma missão de paz multilateral, algo que deveria começar somente em Setembro de 2013.
Uma fonte anónima da Presidência francesa à France Presse:
O que nos surpreendeu foi o uso de armamentos avançados e o bom treinamento que eles (rebeldes) tiveram para usá-los. [...] No começo pensávamos que seriam um bando de homens com armas primitivas, mas a realidade é que são bem treinados, bem equipados e armados.
E, ao que parece, caíram do céu.
Por enquanto não está previsto o empenho de tropas inglesas ou americanas, mas o Reino Unido assegura a colaboração logística enquanto Washington envia armamentos e sistemas de comunicação.
E não pode ser excluída uma expedição "humanitária", tal como acontecido na Líbia.
As razões
Porque os Países ocidentais apoiam as forças governamentais? Porque o Azawad ainda não foi reconhecido?
Como afirmando anteriormente, para entender as razões não é possível esquecer algumas palavrinhas mágicas: ouro, prata, diamantes, fosfatos, urânio, bauxita. Às quais podemos acrescentar o tráfego da droga: o Mali é parte da rota utilizada para transportar as substancias ilícitas para o mercados da Europa e do Leste. Uma situação que a praga da corrupção no governo nunca permitiu enfrentar.
Desde 1960 até o final do anos '90, as minas de ouro pertenciam ao Estado. Depois, seguindo as indicações da Associação Internacional de Desenvolvimento (organismo do Banco Mundial), começaram as privatizações e a licenças de exploração. Até 2007 foram concedidas 150 licenças operativas, 25 certidões de exploração e 200 permissões de pesquisa. O resultado é que a extracção de ouro no Mali aumentou desde a meia tonelada de 1980 para 50 toneladas em 2007.
Os maiores operadores são a
AngloGold Ashanti Limited (África do Sul), a
Iamgold Corporation (Canada), a
Randgold Resources (Reino Unido) e a
Pearl Gold AG (Alemanha). Destas, particular destaque para a primeira, a
AngloGold Ashanti Limited, a empresa liderada por Tito Mboweni, o ex governador do banco central do Sul África, ministro do trabalho no governo de Nelson Mandela, membro do World Economic Forums.
A companhia explora ouro, prata e urânio e é considerada uma das piores empresas do sector, apesar dos resultados económicos, por causa das condições de trabalho (157 mortos entre 2004 e 2009), os prejuízos ambientais e a violência que utiliza em relação aos que tentam contrastar as operações dela (casos dos homicídios na Colômbia).
Mas os interesses ocidentais no Mali não limitam-se ao sector mineiro.
Uma das poucas áreas nas quais o Mali consegue exportar os próprios produtos é o têxtil, liderado pela
Compagnie malienne pour le développement du textile (CMDT). Detida pela francesa
Compagnie française pour le développement du textile e pelo Estado do Mali, deveria ter sido totalmente privatizada em 2008, como pedido pelo Fundo Monetário internacional, mas uma petição popular impediu que isso acontecesse.
Pelo menos, até hoje.
Outro sector com uma forte presença ocidental é a telecomunicação, com as empresas Ikatel, subsidiária da
France Telecom, e Malitel da
Siemens. Em qualquer caso, a maioria das (poucas) grandes companhias do Mali vêem a participação ou pertencem ao ocidente, França me primeiro lugar.
Parta completar o quadro, é necessário também lembrar que recentemente foram descobertas reservas naturais de petróleo no Mali. Na corrida para a abertura das explorações: ExxonMobil, Shell, Air Liquid, Tamoil, Total, Elf.
Desta forma, ficam um pouco mais claras as razões da próxima intervenção "humanitária" no Mali.
Ipse dixit.
Nota: um agradecimento a Sérgio para ter realçado o assunto.
Fontes: Wikipédia (versão inglesa, várias páginas), MBendi, International Policy Digest, Globalist
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