Mais tarde, muito mais tarde, foi a vez de Chavez, na Venezuela. Uma espécie de revolução socialista estilo Bolivar, defeituosa e cheia de buracos. Mas tinha continuado. Mais em baixo Lula, numa estranha imitação capital-socialista. Mais em baixo ainda a Kirchner, nada mal mas demasiado centrada no choque com a Finança. Morales na Bolívia tinha feito dois ou três movimentos verdadeiramente ousados, depois Correa no Equador, com grande coragem não apenas no papel.
Em poucas palavras: uma ideia, algo para tentar quebrar o domínio económico dos Estados Unidos no continente e não só. Uma ideia não nova, adaptada às novas exigências, mas sempre melhor do que a desolação nos outros cantos do Mundo. O "quintal" dos EUA tinha despertado.
Socialismo? Comunismo? Não. Se assim tivesse sido, aqueles Países nem teriam sobrevivido uma semana. Única excepção: Cuba, um caso muito particular. Na verdade foi uma espécie de Capitalismo muito alternativo: atrás das bandeiras vermelhas e das fotografias do Che Guevara, havia o livre mercado, mas com regras personalizadas, traços originais. Foi a tentativa de construir um Capitalismo com rosto humano, entrar na economia de mercado sem esquecer os clássicos valores da Esquerda. De facto, foi uma boa experiência.
Mas a experiência tinha três graves problemas de fundo. O primeiro era de método, pois não seguia de forma rígida os ditames Apple/Google/Facebook: isso representava um desafio ao poder de Wall Street. O segundo problema era ainda mais grave: faltava um líder. Enquanto Fidel envelhecia na sua ilha-excepção, ninguém dos seus jovens clones tinha a estatura para erguer-se como guia supranacional: cada um operava no cantinho dele. Sim, havia acordos internacionais, havia negociações: mas não se pode eleger como símbolo um pedaço de papel, é preciso mais. O terceiro problema era aquele letal: não pode existir um Capitalismo com rosto humano. Mais cedo ou mais tarde, a economia de mercado invade qualquer recanto, até os mais protegidos do sistema. É aí que ficam misturados o dinheiro com os interesses pessoais, a corrupção, os "favores", as comissões, a criminalidade. E é esta a porta de entrada do Capitaslimo, algo que pode ser evitado apenas numa ilha, metafórica ou geográfica.
E foi assim que em Manhattan alguém olhou para o mapa e reparou que no quintal algo tinha mudado. Então foi chamado o idiota de turno, porque a situação tinha que ser mudada. Certas experiências são simpáticas, podem dar algum jeito até, mas depois dum tempinho é melhor fechar antes que surjam ideias esquisitas na cabeça das pessoas.
O idiota de turno antes teve que levantar as sanções, depois foi enviado até Cuba. E com um discurso de 37 minutos e meio acabou de vez com o único símbolo que ainda conseguia manter-se de pé e que alimentava os sonhos dos vizinhos.
Um discurso simples: Fidel tinha devastado Cuba ao longo de 25 anos, com os cubanos a sufocar numa Idade Média comunista feito de prostitutas baratas para os turistas ocidentais, sem uma verdadeira liberdade, jovens desesperados num isolamento cultural pior daquele das províncias chinesas.
Foi isso que disse o idiota de turno? Não, claro que não: limitou-se a espalhar o cheiro da liberdade, os usos e os costumes da classe média. Mais do que suficiente. Ovação dos jovens cubanos para o simpático Obama. E Cuba ficou arrumada.
A transmutação de Cuba irá levar consigo os outros Países da América do Sul. A Venezuela já foi, a Argentina também. O Brasil não está propriamente em forma, os restantes são realidades limitadas que serão absorvidas sem grandes problemas. Inútil fazer de conta que tudo poderá continuar como antes, porque assim não será: foi desligado o farol, a queda de Cuba está aí para lembrar que é possível resistir ao longo de muito tempo, décadas até, mas no fim a ideologia mais agressiva, mais rastejante, mais metastásica, mais sorridente ocupa qualquer lugar. O fim do sonho socialista do século XXI? Não, o Socialismo (o verdadeiro e autêntico Socialismo) desapareceu há muito, enquanto o Comunismo nunca teve a força suficiente para tornar-se uma realidade. É o fim do último símbolo, que agora irá tornar-se a nova Flórida dos reformados norte-americanos. E com o símbolo desaparece a experiência também.
Nos próximos 15 anos, com uma Cuba invadida por smartphones, hipermercados, salas multiplex, bolhas imobiliárias, fundos de poupança, qual símbolo será possível invocar? Com os Walmart, com as privatizações, com os jovens licenciados cubanos que ganham 200 vezes os seus homólogos do Peru ou da Bolívia, o que poderá ser apresentado como modelo pelos vários Morales ou Correa?
É triste? Sim e não. Não porque tinha chegado a altura de repor no armário uma ideologia fora do tempo e já chumbada pela História. Sim porque isso significará também o desaparecimento da experiência mais original surgida nas últimas décadas na América do Sul. E isso é mau. Se só não tivesse sido colada tão firmemente ao modelo de Esquerda, quem sabe?
Com a abdicação de Cuba fecha-se um longo e importante capítulo político e económico. Sem dúvida uma forma de resistência. Com o fim do "proto-Socialismo-novo-Capitalismo-alternativo" da América do Sul o mundo fica mais pobre, porque o leque de escolhas está cada vez mais reduzido. Afinal o processo de homologação geral deu outro passo em frente.
"É tempo de morrer", como diz Roy na sequência final de Blade Runner? Mas nem pensar! É tempo sim, mas de procurar algo novo. Esquerda e Direita são movimentos que têm como fim a sobrevivência deles mesmos: são modelos auto-replicantes e não representam valores absolutos. Ao procurar na História podemos encontrar outras divisões que, nas respectivas épocas, não foram menos importantes.
Na Antiga Roma havia a divisão entre o partido dos patrícios (a minoria dos ricos) e os plebeus (os pobres); Na Idade Média foi a vez dos Guelfos (apoiantes do Papa) contra os Gibelinos (apoiantes do Imperador); No séc. XVII, no Reino Unido, apareceram os Tories (conservadores, em favor da monarquia absoluta) e os Whigs (progressistas, em favor da monarquia constitucional). E estes foram apenas as divisões mais marcantes. Foi só a partir da Revolução Francesa que nasceram os partidos tais como hoje são conhecidos: Esquerda, Direita e Centro. E foi apenas com a definitiva afirmação da Revolução Industrial que estas divisões alcançaram a maioria da população.
Esquerda e Direita (o Centro costuma ter uma menor relevância política e ideologicamente é mais fraco), portanto, não são algo "absoluto" mas são o fruto da nossa sociedade, de como esta foi construída a partir dos finais de 1700; e não têm a capacidade de ultrapassar o actual momento histórico, quando a serem posta em causa são as mesmas bases da sociedade. Sem falar de como esta divisão da população foi e ainda é utilizada para manipular a vontade dos cidadãos, o que conta é que estas bases mostram cada vez mais uma fragilidade que não pode ser tratada apenas com ideologias velhas de quase dois séculos.
A nossa organização interna precisa dum definitivo salto para frente: para onde ainda não é claro (uma Nova Ordem Mundial, mas de que tipo? Decrescimento?), mas que não disponha dos meios para continuar ao longo de muito tempo ainda também parece bastante claro. E o definitivo ponto de viragem pode estar mais perto de quanto imaginado.
Nesta óptica, o fim da ilusão comunista (mais no geral: da Esquerda) não é um sinal tão negativo. Sobra o pior dos inimigos: o Capitalismo, hoje representado pelos Estados Unidos, pelos bancos de Wall Street, pela Grande Finança globalizadora. Um autêntico câncer com um capacidade de adaptação espantosa, que passou através de inúmeras fases e sempre conseguiu sobreviver. Mas "sempre" significa "nos últimos 200 anos", não mais.
A boa notícia? Tudo tem fim. Se determinados (talvez não todos) valores da Esquerda podem chegar ao fim, nem o Capitalismo, com a sua (nossa) sociedade moldada segundo as regras do consumo, não será a excepção.
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