Conspiração
Donald Trump, o filho da lama
Ontem estive a ver o programa semanal de John Oliver. Aconselho: muito humor, por vezes cáustico (Oliver é inglês mas trabalha nos EUA e teve que adaptar-se), que faz reflectir.
O importante é não esquecer que estamos a ver um programa que faz propaganda política, neste caso Democrata. Portanto, normal um inteiro episódio dedicado a atacar Donald Trump enquanto acerca da simpática Hillary o silêncio é absoluto.
A pergunta é: como é possível que nos EUA votem uma besta ao cubo como Donald Trump?
Porque acerca disso não pode haver dúvidas: é uma besta ao cubo.
Mas boa parte dos Americanos gostam dele.
Faz sentido? Faz, faz...
Ted Cruz, o outro candidato republicano, atirou a toalha para o chão. Aliás, considerados os votos, mais do que toalha podemos falar em lenço de papel: a vantagem de Trump é esmagadora, será ele o adversário da democrata, a simpática Hillary. A não ser que haja inesperados acidentes de percurso.
Em qualquer caso, dificilmente o milionário conseguirá travar a corrida da Deusa da Guerra, o sistema propagandista da Clinton é impressionante e não admira: é a elite toda que fica atrás dela, não são permitidos erros.
Mas não será uma corrida fácil. Trump é o candidato do qual todos gostam, que recolhe a aprovação dum universo bem vário: seria um erro pensar nos apoiantes de Trump como um conjunto de analfabetas cuja ocupação é observar as vacas nos pastos enquanto engolem outra cerveja (os apoiantes, não as vacas). Observem os dados: há muito mais do que isso. Sobretudo, Trump sabe agradar a zona erógena dos Americanos: o orgulho patriótico.
É difícil acreditar nos discursos feitos no meio duma campanha eleitoral, lógico que um político não diga toda a verdade, faça promessas que dificilmente serão mantidas e conte com alguns "efeitos especiais" para impressionar os eleitores. Todavia, afirmações como aquela segundo a qual as suas prioridades na economia vão ser colocadas no interesse do trabalhador americano em detrimento do estrangeiro, que tem planos para punir as empresas que deslocalizam as actividades... isso atinge o imaginário colectivo, este é o tal orgulho. Hillary simplesmente não consegue: poderia dizer as mesmas coisas, mas nem conseguiria convencer-se a si mesma. Trump, pelo contrário, convence e sem esforço.
"America first", os EUA em primeiro lugar, em todos os sentidos: militar, político, económico, estratégico. Aquela de Trump é uma América que manda dizer: "Se vocês querem ser parte duma aliança estratégica (a Nato, sem dúvida, mas também em israel apitam os ouvidos) devem abrir os cordões da bolsa, aumentar os investimentos na defesa ou defender-se sozinhos". Os Americanos gostam disso e irritam-se ao ouvir Hillary falar de "cooperação", "colaboração" e tudo o que acabar em "-ão".
Por outro lado, aquela do candidato republicano é uma América que afirma querer dialogar com Rússia e China, porque o inimigo comum percebido é agora o extremismo islâmico. O objectivo declarado de Trump é uma paz baseada no mútuo respeito entre Países, sem esquecer os equilíbrios de forças: não descartando, desta forma, um reforço com algumas ogivas nucleares de nova geração.
Esperto Trump: é um regresso à Guerra Fria, à época dos dois blocos, que os mais velhos entre os eleitores associam ao
boom dos anos '50, '60 e também '80. Uma época onde tudo era mais simples no imaginário colectivo: os maus dum lado, os bons do outro. No papel dos maus agora fica o terrorismo, Rússia e China são maus só um pouco, Trump prefere apresenta-los como possíveis partner. Vice-versa, Hillary passa o tempo a descrever cenários apocalípticos: o terrorismo, Putin como Hitler, a ameaça chinesa... nada para fazer, é o DNA dela que lhe impede captar os humores dos humanos.
Também é interessante em Trump a ideia de globalismo como perigo e os interesses supranacionais que devem ser defendidos das "uniões". Qualquer referência à União Europeia não é puramente casual.
Tudo isso significa que se a América como uma comunidade, como povo, não tivesse sido verdadeiramente humilhada e ofendida pelas suas últimas Administrações, se o seu prestígio não tivesse sido minado nos últimos quinze anos, Trump não iria recolher tanto entusiasmo e tanto ódio por parte dos adversários, que afinal foram os principais responsáveis de tal humilhação. Em condições normais, Trump já teria sido varrido da corrida presidencial. Mas esta não é uma altura normal e o bloco da elite agora tem que enfrentar um monstro que as suas falhas criaram.
Os Americanos têm problemas e não poucos: foram os primeiros a sofrer e a pagar as consequências da crise financeira de 2008, com as falências, as expropriações, a ajuda do governo aos bancos
too big to fail, com o dinheiro dos contribuintes atirados para os cofres de instituições privadas. Foram eles os primeiros a sofrer a deslocalização do trabalho, o desemprego, a desertificação industrial e as desastrosas políticas de imigração. Contra eles foi implantada a arma do
politically correct, da supremacia racial ao contrário, do totalitarismo anti-identidade.
A Constituição e os seus princípios foram regularmente atropelados: depois do 11 de Setembro, os Americanos viram uma redução dos seus direitos civis e, mais no geral, da liberdade pessoal, substituída por pesadas camadas de cosmética sobre os direitos das minorias. Aquelas mesmas minorias hoje dispostas em falange contra Trump. O
Patriot Act, que passou em 2001 sob a ameaça de antrax, foi confirmado por Obama em 31 de Dezembro de 2011 tal como o NDAA (
National Defense Authorization Act), uma lei que prevê a prisão por tempo indeterminado e sem julgamento ou
habeas corpus quando a suspeita for "terrorismo". Termo suficientemente vago para abranger várias situações.
Os soldados foram enviados para lutar em guerras que não serviram e que foram regularmente perdidas: no Afeganistão, o único resultado foi a reactivação da produção do ópio, o canal de financiamento privilegiado da CIA; no Iraque festejaram apenas as multinacionais do petróleo, pois o País ficou de rastos. Nada disso serviu para travar o terrorismo que, aliás, tornou-se cada vez mais forte e perigoso (também porque apoiado por Washington ou pelos aliados desta).
Mesmo nestes dias está a ser apresentada a última reportagem de Michael Moore, um estalo na cara dos Americanos: na Europa um total de oito semanas de férias pagas, duas horas para o almoço, cinco meses de maternidade com salário integral; na Finlândia escola pública que cria os alunos mais bem preparados do mundo desde que foram fechadas as escolas particulares; na Eslovénia universidade gratuita; as prisões-modelo da Noruega, com uma taxa de reincidência de 20% (80% nos EUA...).
Enquanto isso, nos EUA fala-se de surpresas relacionadas com a segunda parte do Panama Papers (com uma má notícia para a doce Hillary), emerge cada vez mais o descontentamento do Pentágono por causa das interferências da CIA e da indústria privada da defesa. E é no meio militar Trump já recolheu alguns aliados de primeira grandeza, como o Gen. Michael Flynn, que agora é seu conselheiro e inspirador da política de aproximação à Rússia.
Há um esvoaçar de facas no ar, ressurgem velhas histórias sobre os relacionamentos entre a CIA e a mãe de Obama. Existe a vontade de fazer as contas, algo que espera há 16 anos, desde que Donald Rumsfeld, durante um discurso aos militares, afirmou que "o nosso adversário está perto, é a burocracia do Pentágono". Era o 10 de Setembro de 2001. Desde então, a América foi arrastada para uma das fases mais obscuras da sua já não brilhante historia. Foi escolhido chafurdar na lama: e na lama encontrar um candidato como Donald Trump é o mínimo que possa acontecer.
Ipse dixit.
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